terça-feira, 30 de setembro de 2008

Entre o Silêncio e a Brisa: O Quinteto Perdido de Miles Davis.

Fevereiro de 1969. Logo depois de gravar a pedra fundamental do fusion* – In A Silent WayMiles Davis resolveu dar uma enxaguada em sua numerosa banda de estúdio e sair em turnê de divulgação do mais recente trabalho. Para desespero dos puristas, o novo disco escancarava de vez o romance extraconjugal do trompetista com o rock, ainda que soasse calmo e pacífico (principalmente na faixa-título). A obra antecipava as mudanças por vir. E essas transformações começaram a ser sentidas também nos shows – com “standards” substituídos cada vez mais rápidos por novas composições originais, inclusive de novos parceiros.

Na verdade, as saídas do baterista Tony Willians e do baixista Ron Carter – depois das gravações de In A Silent Way e Filles de Kilimanjaro, respectivamente – abriram o espaço para a chegada de jovens músicos. Estes, iam se acumulando em ensaios e revezando-se nas gravações (no melhor espírito comunitário da época). E Miles gostava daquelas novas figuras cabeludas, faziam-no sentir-se rejuvenescido. Não que ele precisasse. Apesar de ter entrado na casa dos 40, estava no auge da forma física, cultivando o corpo à base de extenuantes treinos de boxe e um perigoso coquetel de drogas (legais e ilegais). Pra poucos.

Ao vivo, resolvera voltar ao consagrado esquema do quinteto de jazz clássico: com dois instrumentos de sopros e três na seção rítmica. Mas de clássico o grupo não tinha nada. Pelo contrário. Queriam quebrar a barreira do som sem precisar entrar num caça militar. Os próprios insistiam em serem classificados como uma banda de rock. Só que não se encaixavam bem nessa categoria. Quer dizer, em nenhuma. No mês março de 1969, depois de quase quatro anos, o The Miles Davis Quintet pisava novamente em um palco em Nova Iorque. Só que nesse meio tempo tudo havia mudado. De um tipo de azul para as cores psicodélicas.

Dentro da mitologia milesniana esse grupo ficou conhecido como o “The Lost Quintet”(ou “The Third Great Quintet”, para os mais entusiasmados) e era formado pelo sempre inspirado Wayne Shorter (sax), o calculista Chick Corea (teclado), o cativante Dave Holland (baixo) e o feroz Jack DeJohnette (bateria). O pertinente apelido deve-se ao fato da formação nunca ter entrado no estúdio para gravar um disco como quinteto, pois só trabalharam juntos em colaboração com outros músicos, em sessões com o próprio trompetista. Assim, durante muito tempo, não houve outro registro senão a prejudicada memória dos fãs.

Em pleno verão de 69, seis meses depois de gravar o último álbum, um grupo ainda maior de músicos trancou-se no estúdio para conceber a obra-prima do fusion – e o segundo disco mais vendido do artista – Bitches Brew. Muitas das composições gravadas surgiram em ensaios e improvisações do novo quinteto, durante as apresentações na primavera anterior. O grupo fixo começava a dar bons frutos. Resultado da química explosiva entre a sólida cozinha e a beleza caótica dos metais. Confluência de ritmos direcionada para além dos limites prováveis. Com Bitches Brew, Miles atinge seus objetivos artísticos quando resolveu embarcar pela primeira vez no colorido ônibus da contracultura.

Enquanto esperava o álbum chegar as lojas era hora de jogar-se novamente nas curvas da estrada. E o grupo não poderia ser outra senão o Quinteto Perdido. Durante meses trabalharam sem parar. Apresentaram-se nos maiores festivais de música e casas de shows da época – ao lado de bandas de rock – para um público muitas vezes alheio à história musical do trompetista. Em abril de 1970, com o lançamento do disco no mercado americano, veio a consagração.

Começo dos anos 2000. Sai It’s About That Time: Live from Fillmore East, a fita perdida do Quinteto Perdido. Gravado em março de 1970, o repertório traz músicas dos últimos discos até então: In A Silent Way e Bitches Brew (ainda que o último não tivesse sido lançado). Um adendo importante: nesse concerto (como em muitos outros) a banda apresenta-se como um sexteto, já que conta com a participação especial do percursionista brasileiro Airto Moreira. Ainda assim, é o mais perto que podemos chegar desse tesouro enterrado sob a areia do tempo.

O registro ao vivo merece destaque por trazer a despedida de Shorter como membro regular da banda (representando também o fim do Quinteto Perdido). O saxofonista saiu para montar o grupo Weather Report, juntamente com o pianista Joe Zawinul. Os outros colegas também aproveitaram o momento para formarem seus próprios conjuntos, tendo Miles (e o fusion) como norte criativo.

O Quinteto Perdido, mesmo com um breve período de existência, conseguiu deixar profundas marcas na história da música. Hoje, podemos notar a influência do conjunto (e das bandas posteriores do trompetista) tanto na música eletrônica quanto no rock e no hip-hop. A polêmica “fase elétrica” foi redimida por DJ’s e curiosos em geral; e atualmente é objeto de culto de admiradores dos mais variados estilos musicais. Miles Davis era um cara do futuro, um visionário. O distanciamento acabou provando o valor de suas experimentações.

*O fusion, verdade seja dita, nasceu uns dois anos antes, no disco de Cannobal Adlerey, 74 Miles Away (1967), em faixas como Directions (composição de Zawinul). Mas devemos frisar que os experimentos elétricos de Miles são praticamente da mesma época, remetendo ao "Segundo Grande Quinteto", e podem ser apreciados em álbuns como Nefertiti (1967), Miles in the Sky (1968) e Filles de Kilimanjaro (1968). Eu chamo In A Silent Way de "A" pedra fundamental porque foi o primeiro disco de um artista de jazz gravado inteiramente com instrumentos plugados. Entendido? Então firmeza.

2 comentários:

Rodrigo disse...

belo post! vai servir em cheio em quem precisa conhecer mais sobre o estilo, os ritmos e a história :) como eu

Etil disse...

Mandou bem mesmo! Bitches Brew é clássico. Outro disco poderoso da época é o Tribute to Jack Johnson. I'm black, alright!